O luxo é sempre autêntico?

Da polêmica das bolsas ao segredo das raízes
do Champagne

Uma reflexão sobre autenticidade, globalização e tradição no mundo do luxo.

Recentemente, uma série de vídeos viralizou nas redes sociais revelando que muitas bolsas de luxo vendidas com o selo “Made in France” são, na verdade, produzidas em países como a China — e recebem esse rótulo apenas por passarem por um acabamento final em solo francês.

Essa descoberta acendeu um alerta: será que tudo aquilo que carregamos como símbolo do luxo francês é realmente feito na França?

Esse questionamento me levou imediatamente a pensar em outro ícone do luxo francês: o Champagne. Afinal, você sabia que as vinhas que produzem essa bebida tão prestigiosa têm raízes americanas?

A polêmica do “Made in France” nas bolsas de luxo

Vídeos no TikTok — como os do usuário @senbags, especializado em couro — mostram que bolsas de marcas renomadas, como Louis Vuitton e Goyard, são produzidas quase inteiramente na Ásia. Os modelos passam por um acabamento final na França, o que permite o uso legal da etiqueta “Made in France”.

Segundo a legislação da União Europeia, o país de origem declarado pode ser aquele onde ocorreu a “última transformação substancial” do produto. Na prática, isso pode ser uma simples inspeção ou costura — ainda que todo o restante tenha sido feito em outro lugar.

Esse tipo de prática, embora legal, levanta dúvidas sobre a transparência na indústria do luxo. Afinal, o consumidor paga não só pelo produto, mas por toda a herança e saber-fazer associados ao selo francês.

As raízes americanas do Champagne francês

No fim do século XIX, os vinhedos da Europa foram devastados por uma praga chamada filoxera, causada por um inseto microscópico que ataca as raízes das videiras. Em Champagne, assim como em outras regiões, os vinhedos foram praticamente dizimados.

A solução? Enxertar as variedades europeias em raízes americanas, naturalmente resistentes à praga. Assim nasceu uma prática que perdura até hoje: a videira europeia, com suas uvas nobres (Chardonnay, Pinot Noir
e Meunier), cresce apoiada em raízes importadas dos EUA.

Essa técnica salvou a produção de Champagne e de muitos outros vinhos finos no mundo. Hoje, mais de 99% das vinhas francesas utilizam raizes americanas — e isso inclui os vinhos mais prestigiados.

Mas afinal, o Champagne ainda é francês?

A resposta é um sonoro sim.

O que faz do Champagne uma bebida única não são apenas as raízes das videiras, mas um conjunto de fatores que nenhuma outra região consegue replicar:

  • O terroir da região, com seu solo calcário e microclima único;
  • As regras rígidas da AOC (Appellation d’Origine Contrôlée), que controlam tudo: desde a densidade da plantação até o tempo mínimo de maturação em garrafa;
  • E, claro, o savoir-faire francês, construído ao longo de séculos, que está presente em cada detalhe — da poda ao dégorgement.

O uso de raízes americanas foi uma adaptação inteligente e necessária diante de uma crise histórica. E isso não tira a autenticidade da bebida, ao contrário: revela sua resiliência e capacidade de evolução sem abrir mão de sua identidade.

A polêmica das bolsas e o caso das vinhas de Champagne revelam duas realidades distintas diante de um mesmo fenômeno: a globalização da produção de bens de luxo.

Em um mundo interconectado, onde matérias-primas vêm de um continente, são transformadas em outro e finalizadas em um terceiro, manter uma produção 100% local e artesanal como no passado é cada vez mais difícil — e, muitas vezes, inviável.

A diferença está em como as marcas lidam com essa complexidade: algumas aproveitam brechas legais e constroem uma narrativa de tradição que não corresponde à realidade; outras, como os produtores de Champagne, encontram formas de se adaptar sem perder a alma.

O Champagne nos ensina que o verdadeiro luxo não está apenas na procedência, mas no cuidado, no savoir-faire e na honestidade com que um produto é feito.

Porque, no caso do Champagne, não é apenas a origem das raízes que importa, e sim a forma rigorosa como as uvas são cultivadas, o solo extraordinário da região e o savoir-faire francês presente em cada etapa da produção.

No fim das contas, o luxo autêntico é aquele que resiste ao tempo com alma, verdade e história.

Referências
  1. Union Européenne – Règlement sur l’origine des marchandises
  2. @senbags no TikTok – Perfil com vídeos sobre bolsas de luxo e produção global
  3. Comité Champagne – História da filoxera e enxertos
  4. Wine Enthusiast – “How American Roots Saved French Wine”
  5. BBC – “O inseto que quase destruiu os vinhos europeus”

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